segunda-feira, 5 de abril de 2010

DEPOIS DO DESTERRO: PERDIDO FEITO NÁUFRAGO

PERDIDO? FEITO NÁUFRAGO?

A pessoa não pede nada e então nasce. Desse momento em diante, sofre um controle cada vez mais rígido, imposto pelos pais, pela civilização, pela escola, pela sociedade. Muita gente consegue resistir ou se adaptar à opressão. Muita gente desmorona ao peso das obrigações logo no começo da escalada. Outras pessoas sofrem mas não se entregam, ainda que dêem cabeçadas marteladas e quebrem braços e pernas, e sofram feridas de espinhos no coração flechado por cupidos loucos e irresponsáveis.

Logo chegam responsabilidades cada vez maiores. Isso porque pouco tempo antes era normal chorar em silêncio no escuro do quarto, de desespero por causa de uma reles prova de matemática durante a sétima série. Mas logo chegam – impiedosas como doenças incuráveis que matam aos poucos – responsabilidades cada vez maiores. A necessidade biológica de amar sem necessariamente encontrar correspondência, o que nem é tão grave, por representar aprendizado que toda pessoa deveria experimentar ao menos três vezes na vida. E, inevitável como o passar do tempo, a imperativa necessidade de trabalhar pra ganhar dinheiro, coisa tão fundamental quanto respirar, quando se é alguém oriundo da classe trabalhadora, enquanto se procura o que fazer da vida pra ganhar o pão. Sim, porque sem trabalho não há dinheiro; sem dinheiro, as possibilidades encurtam. Não se pode vestir boas roupas e se apresentar bem pra sair e encontrar maiores perspectivas. Não se pode sair de casa – pagar ônibus e metrô – e assistir apresentações artísticas diferentes do que se vê na televisão – instrumento maléfico de emburrecimento e estupidificação de inocentes ou acomodados – e assim não se conhece outros tipos de música, de dança, de teatro, cinema, poesia e literatura, esportes e costumes. Não se consegue investir no aprimoramento das virtudes (ainda que para o benefício da minoritária elite econômica e intelectual) que abre espaço ao desenvolvimento profissional de uma carreira, do que fazer pra ganhar a vida. Não se pode capacitar ao exercício das funções exigidas pela civilização material em tempos de globalização e flexibilização dos direitos trabalhistas sem poder ganhar o mínimo de dinheiro pra adquirir ferramentas ou comprar o aprendizado técnico necessário pra poder trabalhar e ganhar dinheiro pra pagar casa, comida, cerveja, diversão, roupa e vacina pras crias e pros cachorros.

A maldição da espécie humana. Tentar alcançar os sonhos enquanto se cumpre as obrigações reais. E assim morrer um pouco por dia.

Ainda que vez por outra o sol brilhe em cores diferentes que façam rebentar miríades de flores e mil cheiros de ternura, o que sobra às mulheres e homens embrutecidos pelas necessidades existenciais não resolvidas é a crua brutalidade. E o vazio. Por vezes a solidariedade. E a maioria das vezes, a competição egoísta num campo em que a sociedade prega virtudes cristãs ao mesmo tempo em que premia justamente quem menos se sensibiliza com o sofrimento ao redor. O cinismo e a hipocrisia vão se tornando ferramentas básicas de quem consegue alcançar conforto material e se isola em suas salas climatizadas em frente às novelas e noticiários comprados por empresários criminosos que ostentam auréolas artificiais, e depois mais novelas e programas de reality show. Enquanto engorda até a morte, o cínico esquece dos famintos que pedem esmolas na esquina de sua casa.

Quem se considera sábio alerta que as coisas são desse jeito mesmo. Que ser contra o sistema não é proibido, só que pode ser caminho curto pra loucura e solidão.

Mas as verdades, das poucas que existem, na verdade são muito relativas. Portanto, nem todo homem que se considera sábio o é de verdade. Muitos que pensam ser estão muito mais próximos da pura imbecilidade. E muitos que por sua vez renegam níveis mais elevados de conhecimento ou sabedoria são tão vazios quanto a vida dentro do peito de um cadáver seco.

Sim: quem tenta elevar-se corre diversos riscos. De fracassar é o mais comum e menos arriscado. Daí, quanto maior é a elevação pretendida e os obstáculos enfrentados, aumentam os perigos. Enfrenta-se a solidão e a ameaça das loucuras mais dementes. Aceita uma carga de sofrimento inerente à vida ascética de quem se rende a um período de forçado celibato pra estudar e tentar alcançar conhecimento e assim abrir portas de novos horizontes. Nega-se a certeza de que as regras beneficiam quem já nasce em família poderosa, e que os dados do jogo estão viciados. Faz a aposta possível sem contar que o baralho tem cartas marcadas e a remuneração dos estudantes é miserável justamente pra que só quem tem bom berço possa estudar e alcançar a ciência elevada pra combinar bons verbos em soluções estéticas vanguardistas defendendo teorias inovadoras e exibindo linguagens artísticas pioneiras.

E a pessoa nem pede nada quando nasce. Porém nasce. Cresce. Aprende a viver, ainda que seja doloroso aprender, pela violência intrínseca ao processo de ensino-aprendizagem. Toma marteladas na cabeça e dá cabeçadas em marretas e paredes, chuta postes e escala muralhas abstratas pra recitar poemas em serenatas às garotas protegidas por quartos perfumados, escovando longos cabelos na frente de espelhos em vésperas de noivados confirmados. E, já que se vive e se respira, portanto, pensa. Ousa.

E, almejando mais da vida, conclui que a vida não é tão simples, e sim, que se trata de uma existência. Pisa duro. Cerra os punhos e os dentes. Abaixa a cabeça quando necessário e sobe o quanto pode na escalada rumo à transcendência dos conhecimentos.

Quando pode, alivia. Pisa com os pés delicados em bailes intergaláticos, acaricia bruxas, ninfas, e fadas, encoxa putas voluntárias voluntariosas, e beija e come mulheres fêmeas, enquanto sorri extasiado e levanta a cabeça pra aproveitar cada momento de deleite, respirando fundo o doce oxigênio do fugaz prazer antes de voltar à escalada. E novamente ter de pisar duro. Cerrar punhos e dentes enquanto faz cara de mal e esconde as lágrimas inevitáveis por quem não pode salvar. Pelo mundo, pelas árvores, pelos bichos e pelas pessoas. Ao menos enquanto se escala não pode olhar pra baixo. Indiferente, deve se concentrar na subida. Até o próximo momento de esquecer a crueldade e novamente pisar com pés delicados em bailes intergaláticos, ou chorar a dor de quem sente as dores dos outros. Ainda que tais oportunidades fiquem cada vez mais escassas conforme os anos passam.

E se passam muitos anos, sensações de fracasso atormentam com maior constância. Aproveitam certos desesperos inevitáveis e torturam, tentando conduzir quem escala ao fracasso ou à loucura e à solidão atroz. Rareiam momentos de sorrisos despreocupados, não porque diminui a vontade de sorrir, mas sim pelas oportunidades que se esvaem, frias e levadas pelo acaso e pelas intempéries, pela fome e pelas vontades insatisfeitas.

Tem-se a sensação de ser um náufrago? Faminto e com sede, apavorado e condenado ao esquecimento em agreste paragem desconhecida do mundo?

Nada mais do que sensação passageira, como todas, à exceção da doença terminal e da morte certa! Afinal, muitos foram as pessoas, mulheres e homens que não se renderam aos vaticínios da civilização material! E foram escravos e soldados forçados, escravas e prostituídas, operárias e operários labutando e se fodendo dolorosamente dezesseis horas ao dia a vida toda, e, ainda assim, lutaram. Em honra de toda essa gente que carrego dentro da cabeça, da qual me sinto, com orgulho, espécie de herdeiro bastardo, ao menos isso prometo fazer: lutar, sem desistir.

Lutar com as armas que me são lícitas e que não me desonrarão (a mentira, a dissimulada farsa dos namorados desesperados ou mimados filhos de papai e mamãe burgueses, a traição, a covardia, o envenenamento dos ambientes públicos pra benefício próprio...). Ainda que muitas vezes precise fazer mais esforço pra lembrar de respirar bem devagar enchendo o pulmão de oxigênio. Que seja necessário repetir mil vezes, em pensamento, que o mal – a desigualdade das oportunidades pelas quais almejo, a empáfia e a soberba dos juvenis burgueses que se julgam sábios por usarem chinelos havaianas e me tiram por louco, por defasado, por superado, por mentiroso e coitado – serve não apenas para o mal em si, mas também pra engrandecer o bem, que é a motivação pela qual escolhi esse caminho tão comprido e que me permitirá, um dia, mesmo que distante, colaborar pra ajudar as pessoas que amo, trabalhar pra fazer a revolução que acredito, plantar as rosas vermelhas e as orquídeas sabor baunilha e as damas da noite, as pitangas, mamoeiros, mexericas e goiabas.

Como diria Marx, “ os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua própria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas ou transmitidas pelo passado”. Certo, velho: farei minha história como puder, do jeito que as coisas maiores – pois quem governa o mundo, sobretudo, é o acaso – permitirem e, caso não permitam, usarei do improviso dos artistas pra defender meu quintalzinho.

E como diria Vitor Hugo, “quem não luta não vive”.

Eu vivo.

quarta-feira, 24 de março de 2010

DEPOIS DO DESTERRO: COTIDIANO

DEPOIS DO DESTERRO: NOTÍCIAS DO COTIDIANO MAIS OU MENOS COMUM

Além de calar o coração (pra não ficar me afeiçoando por cachorrinhas de rua e meninas novinhas inacessíveis ou mulheres maduras e tesudas que vejo no ônibus e nunca mais verei), preciso desligar os ouvidos. Senão, vai ficar ainda mais difícil cumprir a carga de leituras que devo.

É meu cotidiano, agora, depois do ostracismo no Desterro. Exercício de paciência constante. Desempregado, tenho a manhã pra estudar. Os textos que preciso dominar na USP são mais longos e complexos do que os textos da UDESC. Oito da manhã, “bom dia mãe”, “bom dia filho”, e encho a xícara de café preto. Café da mãe é sempre uma delícia, tem a carga de amor materno inerente às coisas que as mães fazem (depende da mãe e do tanto de amor – e a qualidade desse amor – que a mãe projeta) e assim desperto, ligado, termino o café e pego o texto de história ibérica. História de Portugal: sinto-me obrigado a fazer uma boa figura nesse curso, afinal, luso brasileiro que sou, ouço histórias míticas de Portugal desde miúdo.

Autor português; não é fácil, mas também não é difícil, desde que me concentre. Estou motivado e curioso. O autor analisa o processo peculiar de centralização política em Portugal, problematizando questões que pareciam simples. Gosto disso: desmonta as noções seguras que eu carregava. Inicio, concentrado. Espero terminar a primeira leitura por volta de dez da manhã, pra sair e arrematar a segunda leitura no ônibus.

Nada é tão fácil assim pra quem mora na COHAB Teotonio Vilela. Além disso, minha mãe não está habituada a ter quem a ouça: estou sentado com o texto aberto, lendo, os óculos postados na frente dos olhos maduros, caneta atrás da orelha como convém a todo vivente com sangue lusitano, e minha mãe precisa falar. Então começa a história do falso seqüestro da filha da dona Maria “coitadinha, saúde tão abalada, ainda mais essa, como é que pode, alguém tão mau assim, e o seu Antônio quase tem um treco do coração e então a Milena chegou e a dona Maria e o seu Antônio perguntaram, ‘ué, você não foi seqüestrada?’”, e a Milena respondeu “seqüestro? Que papo é esse?”, e eu respiro fundo. Penso na problematização formulada sobre o alcance da autoridade real no território português entre os séculos XII e XVI que o Joaquim Romero Magalhães expõe.

Minha mãe ainda não terminou de contar o caso. Intervalo para Joaquim Romero Magalhães. Não digo nada, apenas espero; quando ela termina, ofereço minha ponderação sobre o ocorrido, afinal li sobre isso – falsos seqüestros – algumas vezes. Entendo minha mãe: ela se preocupa. Demais. Digo que se alguém ligar dizendo que seqüestrou alguém da família, ela deve ligar no celular; se for pra mim e eu estiver em aula vai estar desligado, e ela insiste depois. “Não pode se apavorar, mãe, nem se a ameaça for pra um dos netos, sempre mantém a calma e enrola o cara, pede pra ele ligar depois e nesse meio tempo liga pros moleques, pra mim, pros outros filhos e pro papai, só não cai nessa, que o golpe é manjado e fácil de desmontar”, e vejo os olhinhos assustados e cansados aliviarem.

Ela percebe minha necessidade de estudar e me deixa ler. Parágrafos vêm; não é uma leitura complicada e vou desenvolvendo a compreensão do texto sem grandes obstáculos porque conheço outros autores portugueses. Em pouco tempo já são nove horas da manhã: a COHAB desperta com toda sua vida – até então, apenas alguns diálogos em vozes mais altas exigiam mais esforço de concentração – e as pessoas que ainda não saíram ao trabalho ou trabalham em casa ou estão sem trabalho ligam seus aparelhos de som. Ritmos populares disputam a mais alta difusão, saindo das janelas para as escadas e corredores e atingindo a área comunitária dos varais. As mais potentes caixas de som levam os acordes até as garagens. Esforço mais ainda minha concentração. Fica cada vez mais difícil fazer a atenção driblar a banda calypso e a banda deja vu, os pagodes cheios de teclados e gemidos desafinados e tanta descontração que beiram a idiotice, e as estúpidas canções sertanejas que a mídia força o povo a gostar. Entre o intervalo de uma e outra música, ouço um corajoso que tenta ouvir seu Pink Floyd (é o Gazumba, roqueiro das antigas, veterano de COHAB), mas que, por não ter tanta potência nas caixas de som, acaba vencido e dessa forma cava ainda mais funda sua trincheira de resistência heróica, flertando com o risco da adicção por álcool e a impopularidade que cultiva sem se importar e que não o deixará abandonado pelos vizinhos quando precisar (bairros pobres são exemplos de solidariedade, apesar da violência costumeira e das carências diversas).

COHAB Teotonio Vilela: 5.240 apartamentos e 1.748 casinhas, cada lar com menos de 45 metros quadrados divididos em dois dormitórios sala cozinha e banheiro, tudo na área de 978.473 metros quadrados onde vivem oficialmente 34.940 pessoas, mais de 40 mil segundo os moradores que mais pensam na realidade do conjunto habitacional que virou bairro. A arquitetura projetada pelas elites dominantes (impossível fugir do termo chavão, a menos que crie um termo novo que as defina, tipo “brafitongas” ou “cudiampolas”, mas não, nada melhor do que dar o nome que tem as elites dominantes, o que me obriga a usar o termo batido “elites dominantes”; na real nem acho elites dominantes um termo batido, afinal, as coisas são o que são, apesar da mídia controlada pelas elites dominantes forçar a idéia de que o termo definidor de quem SEMPRE governou os governos do país está ultrapassado) comprova com folgas oceânicas a tese do “apartheid social” brasileiro: ricos nos bairros dos Jardins e condomínios fechados, onde abundam cinemas e teatros e escolas e universidades e parques com segurança policial cortês, e os pobres nas periferias, onde abundam botecos e quebradas e a segurança policial violenta e oprime.

Tem gente da periferia que consegue quebrar o cerco e furar a bolha: abnegadas pessoas que estudam e trabalham, com todas as dificuldades existentes, e insistem e persistem e perseveram. Não conheço ninguém aqui profundamente; morei em outro estado nos últimos doze anos e não tenho tempo de fazer amizades aqui, onde por enquanto estou hospedado. Nesse período, como todo mundo sabe, aumentou o número de pobres estudando em faculdades e cursos técnicos, ainda que os números estejam longe do ideal. Sou um caso a parte, nem melhor e nem pior, mas diferente, já estava na universidade em 1995, e não me formei ainda por uma conjuntura de fatores que não excluem minhas incompetências. Outras pessoas da COHAB também poderiam e podem ingressar na USP, especialmente na FFLCH. Mas não conheço ninguém, por enquanto. Na USP tem gente de São Mateus, do Jardim Sapopemba, e de outras periferias da cidade. Mas não acho que possa existir lugar mais dificultoso pra um estudante do que a COHAB, onde as paredes são finas e as famílias estão empilhadas e desprovidas de cultura de estudo, como minha família TINHA quando vivia na Mooca, Na Vila Prudente e na Vila Formosa, em casas de dimensões que permitiam a solidão necessária aos estudantes.

Coloco tampões de neoprene nos ouvidos; costumo usá-los pra dormir, pois cinco da manhã os despertadores dos apartamentos ao redor do nosso despertam e as pessoas falam e abrem gavetas e aqui, nessa arquitetura pra manter os pobres morando sem conforto e longe dos centros econômicos e culturais e políticos, por mais que as pessoas tentem existir em silêncio, não podem: todo passo faz barulho, e quanto maior o silêncio, mais alto fica o barulho mais mínimo.

Mas é um saco: dormir é uma coisa. Ter coisas enfiadas nos ouvidos pra poder ter silêncio e se concentrar é outra. Se fosse uma emergência, faria um esforço. Ainda não é.

Nove e pouco da manhã. Tomar banho, arrumar a mochila e pegar o caminho. Da zona leste pra a zona oeste. No ônibus, do Terminal Sapopemba até o Parque Dom Pedro II, terminarei minha leitura preliminar do texto.

Avenida Sapopemba e Nhanha Melo. Buracos no asfalto, o sacolejar do ônibus. O sol batendo forte nas cópias xerocadas do texto. Tudo dificulta minha leitura. As pessoas falando alto, elas falam alto demais porque o motor do ônibus também não é baixo. Avenida do Estado, trânsito parado. Ônibus em primeira e segunda marchas: acelera um pouco e freia seco em seguida, tranco, não posso manter a cadência da leitura, o texto treme, minha cabeça treme, treme o ônibus, treme meu corpo e tudo o que está dentro do ônibus. Cheiro de fumaça de poluição. Leitura não rende. Passa uma hora de viagem e a Avenida do Estado não termina. Um leve desespero tenta crescer dentro de mim. Respiro devagar só pelo nariz e controlo os nervos.

Hoje o desespero não me domina por pouca coisa. Não consigo ler o texto, então não forço. Participarei da aula como pescador de informações; na semana da páscoa não tem aula, então poderei - espero - colocar a leitura em dia. Se fosse literatura sem compromisso, talvez conseguisse concluir a leitura, ou ao menos avançar.

É quase meio dia quando chego no Parque Dom Pedro II. Meio dia e quinze o ônibus pro Butantã USP sai lotado. Não me sento: suporto a lotação. Meto a mochila embaixo do banco do cobrador e seguro nas barras. Suportar a lotação com as pessoas se empurrando nas minhas costas acaba sendo um exercício para os braços. Do Parque Dom Pedro II à Praça da República, trânsito paulistano, quase meia hora: meio dia e quarenta e cinco a partir da rua da Consolação. O tráfego flui um pouco mais solto. Na Avenida Rebouças, no ponto do Hospital das Clínicas, parte dos passageiros descem, e sobem outros. Meu estômago avisa a necessidade do almoço.

(....)

A higiene bucal depois das refeições também é sagrada: prometi nunca mais a relegar a plano inferior por necessidades de cumprir horários. A fila do bandejão demora mais que a refeição em si. Ao menos encho a barriga de comida balanceada, apesar dos boatos referentes ao salitre.

Chego na aula e a professora já começou. Assisto, ouço, tomo notas que prometo checar depois, quando terminar a leitura como deve ser feita. É desconfortável assistir aula sem a devida leitura do texto. Paciência. No intervalo, um café. Na segunda parte da aula, um documento do século XV sobre a formação precoce da monarquia centralizada portuguesa. Armadilhas do discurso; exercício fácil para calouros de história: capturar, nas linhas escritas por Damião de Góis, o reflexo da idade média. Após a primeira parte da aula, ficou fácil perceber que a centralização política portuguesa não chegava a ser absolutista. Três calouros apoderam-se das verbalizações. E elevam vozes, querendo atrair a atenção e demonstrar conhecimentos. No calor da exposição, os três garotos calam o restante da sala. A disputa se instala. Ouço e pondero. Ao chegar no meu limite, paro. É demais, como diria Belchior. Vão tomar nos seus cus seus chupadores de piroca, como diria Bukowski. Arrumo minhas coisas, levanto e saio. Preciso esticar a espinha e retesar os músculos. É dia de cervejada da Atlética, em prol de fundos pro handebol feminino. Tenho obrigação de colaborar: é uma linda equipe, de muita competência. Antes, necessito suar, sentir a sede necessária pra beber algumas cervejas bem geladas.

Nos fundos da FFLCH, as árvores abrem um intervalo na sisudez acadêmica. A poucos metros de mim, jovens estudantes fumam seus baseados. Não atrapalho a viagem dos outros. Tenho minha própria viagem, sem maconha dessa vez (faz tempo). Tiro o tênis. Faço os alongamentos sagrados. Estralo a espinha e os ombros, o peito e o pescoço. Estico os músculos e permaneço em alongamentos variados, um pouco pra cada membro alongado. Encho os pulmões com o ar fresco da tarde, os olhos fechados experimentando o sabor do oxigênio. Alivio o espírito, pensando nas coisas que deixei em Floripa e nas coisas que aspiro aqui. Me aproximo de uma árvore: “com licença, amiga, você é forte, me dá licença de subir no seu corpo de madeira viva, fica tranqüila, subo com carinho e respeito” e começo a subir, com cuidado pra não cair e não a machucar.

Numa forquilha grossa, consigo sentar confortavelmente, pela excelência do formato da forquilha e grossura dos galhos. O ar livre é puro, sem os vícios da sala de leitura, sem o clima pesado dos ambientes internos das faculdades e seus corredores onde desfilam doutores e pretensiosos estudantes. Estou no alto. Poucos olham pra cima: grande parte dos acadêmicos está ocupada com seus umbigos, e outros, com objetivos importantes. Descobri meu refúgio. Acaricio o tronco da amiga e sussurro baixinho no ouvido arbóreo as palavras do monge José Maria, herança que o Contestado deixou, “árvore é quase bicho e bicho é quase gente”, desço, pego minhas coisas, coloco a mochila. Depois subo de novo; na grossa forquilha, tiro os tênis e a mochila e encaixo as coisas numa outra forquilha, menor. Pego o texto que não havia terminado e retomo a leitura de onde havia parado, confortavelmente escorado no grosso galho da frondosa árvore da qual ainda não sei a espécie.

Enquanto o sol brilhar, vou ler o que devia ter lido horas antes. Ainda é tempo, sei. Afinal, aprendi, nesses anos todos, que errar o caminho não é se perder: é conhecer novas estradas.

Outro dia, organizo melhor minha leitura. Da forma que puder, sabendo que preciso calar meu coração e desligar meus ouvidos. Talvez precise aumentar meu nível de egoísmo. Certeza cruel e cínica: preciso sair da casa de meus pais. E morar mais perto da USP.

segunda-feira, 22 de março de 2010

DURANTE O DESTERRO: POESIA DE LIBERTAÇÃO XIII

Poesia precisa de liberdade. Aprisioná-la em limites de rimas e métricas castra a eficiência do poema. A menos que o poeta seja genial demais. Eu não aspiro a tanto, e mais: tenho por princípio não limitar minha poesia sem raça definida, porque sua finalidade é me conduzir à redenção. Sua finalidade é resgatar minha força e não deixá-la alienada ao largo dos pensamentos que necessito pra me recordar da força que tenho, que todos têm e, no entanto, tão facilmente esquecemos, pra nossa desgraça.



poesia de libertação XIII

errar o caminho não é se perder
quem erra e depois encontra ou acha outro melhor
não se perde, nem se perderá e
alcança a experiência
de conhecer outro caminho.

sonho com as estrelas que me mostram
do mundo as flores que perfumam o universo
reluzentes, na beira da Lagoa em manhã de maio sem sol.

raios luminosos da graça encantam
cães, urubus e homens
refletem a força da grandeza feminina
chama vital que arde por todo lado e faz pipocar
milhões de estrelas e flores de mil cores.

sonhando, ao menos, vou te ver de novo
pois no meu mundo quem manda sou eu
então vou desconsiderar proibições e restrições
vou te pegar, vou te abraçar, vou te beijar, vou testar a mulher
até a exaustão mais absoluta.

a chuva me trouxe pra ver o sol
onde está o sol?, minha querida?, onde está você?
vejo apenas os reflexos mais distantes
ainda que voe por serras e campos e
vales, montanhas, ruas, noites e janelas.

o sol sempre levanta, todo dia, de manhã
disso sei muito bem
se não acerto meus ponteiros é porque
o acaso não favorece minhas escolhas.

Quando o desânimo ataca
forte e traiçoeiro como a peste,
de oxigênio encho o peito e cerro os punhos
e levanto a cabeça e ataco, firme,
as torres onde estão aprisionadas minhas damas do coração.

sexta-feira, 19 de março de 2010

DURANTE O DESTERRO

DIAS ASSOMBRADOS: NA BEIRA DO PRECIPÍCIO DO INFERNO

Era meu primeiro ano no Desterro.

Com a alma provisoriamente amputada e o espírito doente, completamente perdido e sozinho numa cidade desconhecida, procurava garotas de programa acessíveis ao meu bolso. Sabia exatamente o que procurava: e não era apenas sexo com uma profissional. Existiriam orquídeas no deserto estéril? Não custava procurar. Ao menos a aventura é garantida, quando se considera desventuras como aventuras por serem irmãs, apesar de tão opostas. Procurava nos lugares errados e com as pessoas erradas. Erradas para o que eu procurava, apesar da possibilidade da existência comprovada da fortuna materializada em vida de mulher, apesar de, naqueles dias, eu não poder conservar a fortuna que desejava tanto encontrar.

Junho em Floripa. O vento sul entrava por baixo das vestes das gentes mal agasalhadas, como eu, resolvido a suportar o frio que apesar de suportável não era agradável; com ceroulas e blusa mais grossa, o frio desagradável fica gostoso, pra quem gosta.

Eu gosto da vida: gosto do frio e do calor, do dia e da noite, e sei como as chuvas são importantes. Sempre gostei da natureza e da vida. Isso me salvou quando mergulhei no inferno.

Não conseguia dormir. As aulas da manhã seguinte preparadas, assuntos controlados. A cabeça cheia de sonhos, o coração louco mendigando carinho, as bolas explodindo de tanta coisa represada. Os classificados do Diário Catarinense ofereciam um variado cardápio. Se eu soubesse como, procuraria o algo mais que sexo num lugar onde pudesse encontrar. Mas perdido, totalmente perdido, encarava as garotas de programa como terapeutas não convencionais. Se econtrasse o amor verdadeiro, não saberia reconhecer e cultivar. Doente. Estava doente e não sabia.

Havia uma especial. Ela me amedrontava, ao mesmo tempo que me dava paz. Me oferecia sua vida numa bandeja, e isso muito me honrava. Meu medo era apenas meu, e refletia o estado deplorável que eu estava.

O conhaque descia rasgando a garganta. Os anúncios ofereciam mulheres como fossem comida no cardápio de um restaurante. Eu escolhia aleatoriamente, e ligava em seguida. Dependendo da vibração da voz, anotava o endereço e organizava o trajeto pelo qual passaria, conhecendo as moças – analisando o material humano da terapia – e decidindo se ficava ou não. Tentava encontrar uma substituta pra Suzana, a moça que me daria sua vida e da qual tinha medo.

Suzana não era seu nome verdadeiro. Se eu perguntasse ela diria. Mas não quis criar um vínculo tão poderoso assim. Medo cagão. Era doce e meiga a moça de Chapecó – oeste de Santa Catarina, terra devastada pela agroindústria que enriquece nove famílias e empobrece novecentas mil – e apesar de me dar muito bem com ela, evitava procurá-la. Quem precisava da terapia era eu. E depois da transa, ela costumava me usava como terapeuta. Tentava induzir, levemente, que eu a levasse comigo pra casar, libertando sua vida da escravidão que vivia. E eu tinha medo. Ou melhor, não tinha condições. Tinha uma condenação pra pagar. Ela até poderia me salvar. Mas eu não podia alcançar as estrelas respirando a poeira do chão.

Nenhuma restrição moral em casar com uma ex-prostituta; minhas restrições eram com o casamento em si. E por outro lado, meu estado perturbado – eu carregava um forte estresse pós-traumático que me empurrou à depressão, que eu evitava porque não sei fazer o tratamento correto, essa era minha condenação – impedia que eu tivesse qualquer sentimento de amor por alguém. Eu estava morto em vida.

O conhaque descia rasgando a garganta e abrindo a mente pra loucura. As aulas da manhã seguinte já estavam preparadas e os assuntos controlados. Só não sabia se poderia encarar cinqüenta adolescentes, depois mais cinqüenta, depois mais cinqüenta e depois do intervalo mais cinqüenta e depois mais cinqüenta, das 7:30 ao meio dia. Na hora sempre conseguia, proezas que a necessidade fundamental de ganhar dinheiro força o peão a conseguir, com cambalhotas, caretas, ameaças, polêmicas, datas e nomes e liçoes de moral que eu acreditava mas não seguia.

O cartão telefônico já estava definhando, e eu não tinha encontrado nada. Já era perto das duas horas da madrugada. Dali a duas horas, os pescadores iriam ao mar, redes em espera dos cardumes de tainhas vindas do sul, homens brutos misturados à água salgada e gelada e algas que aderiam nos barbantes da rede junto dos peixes sufocados pela falta de água - homens e algas em mistura embrutecedora, homens e algas, areia e sal e a ameaça da morte constante.

Na minha insignificante vida a coragem estava ausente. Não havia mais nada a fazer. O bar estava fechando. Com certa lábia consegui fazer mais uma dose, a saideira. O conhaque desceu rasgando e eu não tinha mais pra onde ir. Minha pesca foi infrutífera, minha rede devia estar rasgada, ou não era noite de peixe, como assim é a vida dos pescadores que não raro lançam-se ao mar e voltam com os barcos vazios de pescado.

Todavia, eu tinha pra onde ir; respirei fundo e me preparei pra Suzana e seus sonhos de príncipe encantado libertador. Mas nos dávamos bem, eu precisava do que ela me daria, porque sempre me deixava inerte de tanto cansaço e satisfação. Quase duas horas, madrugada fria, melancolia e as bolas cheias. Poderia cochilar um pouco antes das seis da manhã, se ela me deixasse ficar.

O numero de Suzana estava salvo no meu celular. O acaso jogou ao meu favor: ela estava disponível e a voz vibrou energias positivas ao me ouvir.

Pouco depois, entrei no prédio em que ela morava e trabalhava, escravizada do sexo. Mentalizei o que faria. Na porta, toquei a campanhia. Ela atendeu, fenomenal: vestia um conjunto de jeans calça e blusa colados, os maravilhosos ombros e boa parte das costas de fora, a pele morena lisa e cheia de vida, beleza explorada e inocente, vítima dos homens, e ainda assim tão forte, tão vigorosa. Me convidou a entrar, “olá, tudo bem?”, “tudo bem, e você?”, “ah, eu vou bem, mas queria um pouco de carinho seu...”, e ela sorriu, “entra, entra”, e então ficou na minha frente, olhos nos olhos, nada mais a dizer. Ela sabia qual sua função e eu sabia tudo o que poderia obter com os cem reais que deixaria com ela.

Um abraço. Eu precisava de um longo e forte abraço, e Suzana sempre me fazia bem. Abraço, abraço!..., e por alguns minutos eu sumia, desaparecia, minha alma fazia tenção de brotar novamente regenerada e forte, e meu espírito aliviava as dores, como doente desidratado recebendo soro poderoso e salvador; por alguns minutos eu cogitava levá-la comigo do jeito que ela pedia, tipo Tolstoi em “Ressurreição”, mas com leveza, sem culpas cristãs e nem caridade. Uma troca lucrativa pra nós dois: eu teria pra quem voltar pra casa depois das aulas e das andanças, e ela seria uma esposa bem mulherzinha de casa, agradecida e salva depois de tão cansada da vida horrorosa que foi levada a viver.

Hoje é fácil perceber que naquele tempo Suzana teria sido minha salvação. Eu estava na borda do precipício. Poucos meses depois, entraria no inferno e passaria lá alguns anos. Eu estava com a alma provisoriamente amputada e o espírito doente. Cego pela demência temporária que estava vivendo, não vi o que era tão claro. Seria uma bela troca de salvações: ela me salvando de um lado e eu a salvando de outro, pra depois de um indefinido tempo, irmos cada um pro seu lado, mais forte e livres e preparados pra vida.

Ela me beijou na boca com apaixonada fúria e pavor. Como sempre fazia comigo, me fazendo sentir tão especial, e se abandonando nos meus braços, e nós desabando na cama como se o mundo estivesse pra acabar – e estava mesmo, pois nosso mundo juntos duraria apenas duas horas, mas seriam duas horas de amor, sim, amor, um tipo de amor que os moralistas desconsideram mas que é amor sim, amor de qualidade e milagroso como todo sentimento que é bom – e fomos morrer e renascer três vezes.

Suzana deitou a cabeça no meu peito e relaxou. Meio que cochilávamos, conversando baixinho, “quer ficar? , pode dormir aqui comigo”, “eu posso?, não vou atrapalhar?”, “não, essa hora não vem mais ninguém, e gosto de dormir assim, abraçadinha em você”, amostra grátis e breve do paraíso, me deu um beijo estralado no peito e se aconchegou novamente em mim, sensação que me abandonou em São Paulo uns anos antes, quando outra moça com outra vida me fez aprender chorando como é ser homem, e como um homem deve sobreviver às porradas que as mulheres dão.

Flores e crianças, café com pão e frutas, vizinhança conhecida e pacata, pai trabalhador rural e mãe costureira. Suzana tinha família boa e não se incomodava com a pobreza. Não tinha grandes ambições, mas queria comprar a terrinha para o pai cultivar. Linda, estonteantemente linda aos dezesseis anos, acostumou-se com as amigas dizendo que podia ser modelo. Foi quando o bandido apareceu: homem maduro, bem vestido e bem falante, dizendo ser advogado e empresário, prometendo promessas que resolveriam a vida da família toda em poucos meses. Suzana pediu licença pra ir, a mãe e o pai não deixaram. O criminoso bem falante sugeriu a fuga: trabalho honesto, ele planejava as propagandas em que a morena de olhos verdes se encaixava, prometendo pra logo a volta pra casa, com dinheiro, e daí a terra, o sítio, a máquina de costura pra mãe.

Mentiras. Violência. Dívidas escravizadoras, documentos retidos, ameaças. Bandidagem. Cobrança de dinheiro: atendendo 24 horas por dia, conforme recebia ligações e clientes, trabalhando todo dia, pagava o relativo sossego que conseguia. Pagando o que lhe era cobrado, nem precisava sofrer mais ameaças.

Corpo cochilando e a cabeça pensando automática: dorme, menina, com a cabeça no meu peito – apenas meus dedos movimentavam lentamente levemente, carinhos nos cabelos de cachos morenos – e escuta meu coração pedindo desculpa: não posso fazer nada. Também sou criminoso. Ajudo a manter sua escravidão. Omisso, tenho pena a pagar.

Poucos meses depois, não encontrei mais Suzana. Procurei até ficar mais desesperado: por apenas mais um pouco de puro alívio egoísta e descartável. Não achei. Já havia entrado no inferno. Demoraria alguns anos pra achar a saída.

terça-feira, 16 de março de 2010

depois do desterro: suspiros

Agora já é depois do desterro. Não é o momento de ruminar acontecimentos ocorridos nos últimos doze anos de santa catarina: cada coisa no seu tempo.

O presente em são paulo. Por mais que eu tivesse me preparado pra essa mudança, o choque é inevitável. Não apenas por ter vivido os últimos três anos numa trilha no meio do mato (onde conheci um pedaço de algum tipo de redenção), mas pelo estilo de vida e o ritmo das coisas que aconteciam comigo lá no sul, numa cidade que, apesar de capital de estado, é pequena e provinciana.

Mas as mudanças trazem consigo sempre inevitável carga de imprevisibilidade; portanto, devem ser aproveitadas da forma mais positiva possível.

Passado o primeiro instante de volta à São Paulo, o estigma da impotência do protagonismo que me habituei em Santa Catarina me assalta. É o nada poder fazer quando a consciência apita, aponta, grita e chora.

Nada de errado em morar de volta com os pais; estamos nos virando muito bem, pai e mãe dando cotidianos espetáculos de paciência, e eu nem fico muito tempo em casa(embora nas manhãs em que tentei estudar na COHAB não tenha me dado muito bem: os minúsculos apartamentos, logo de manhã, explodem cada um com um ritmo musical que faz sucesso nas rádios populares, dificultando demais a concentração nos densos textos da faculdade de história, me empurrando ao caminho da Cidade Universitária, onde leio, estudo, me alimento no bandejão e respiro o ambiente intelectual que, vez em quando, também força demais a paciência do estudante proletário aqui), pois vou conseguindo manter a tranquilidade nos lotados ônibus e metrôs que pego pra ir e voltar da USP pra COHAB Teotônio Vilela - quando especialmente nas noites, nos retornos, as aventuras são constantes.

Mas até aqui (por razões de carência de vitaminas A, C, D, M e S), quando estou numa festa na USP, ou em meio de colegas bebendo cerveja ou conversando, em algum momento bate o desespero. Faltam vitaminas, sem elas não posso ser feliz. São elas as vitaminas A (amor), C (carinho), D (dinheiro), M (mulher) e S (sexo). A falta delas abre caminho pros tormentos da existência. Então não posso ficar parado. Os caras são legais; oferecem cerveja, baseado, convidam pras festas e baladas universitárias; nas baladas as garotas são sensacionais, e até um careca quase coroa como eu pode se dar bem. Mas não posso ficar. A culpa do desemprego, de estar dando despesas pros meus pais e pro meu irmão Roberto(que está hospedando Blues e Frida enquanto não me acerto aqui na metrópole), a falta de perspectiva e a necessidade impiedosa de não gastar mais dinheiro do pouco que me resta do que tenho guardado me torturam. "Valeu, rapazes", digo, "tenho que ir nessa", e, macaco véio que sou, sempre tenho algum argumento irreprensível pra sair fora.

E toco a caminhada pro ponto de ônibus. É melhor ir embora da USP pra zona leste de noite, após as 21:00 horas. Quase meia noite; macaco véio, sei que no Parque Dom Pedro tem ônibus pra São Mateus até uma e pouco da madrugada. Sem trânsito, do Butantã até o centro, o trajeto leva pouco mais de meia hora.

Parque Dom Pedro: não é um lugar tão feio, quando se conhece. Acho que já foi pior em tempos dos anos 80 e 90, ainda que hoje também não esteja de todo tranquilo. O cara que anda sozinho nesse lugar tem que ficar esperto. Se quer se arriscar, deve se arriscar com cuidado. No ponto do ônibus pro terminal São Mateus, o horário dava mais meia hora de espera. Minha cabeça entorpecida e cheia de coragem me fez observar ao redor: um boteco aberto. Caminhar até lá, atravessando a rua e cruzando parte do Parque Dom Pedro fora do terminal de ônibus é uma aventura que não tem preço e parece loucura pra muita gente. Coisa do tipo que eu gosto.

Fui. Logo na saída do terminal de ônibus, malacos da rua, os "nóias" e tipos assim encaram firme e feio, esperando um vacilo pra acharcar, assaltar, espancar, se for preciso matar por qualquer dez reais - uma fortuna, pros viciados em crack que estão sem grana e na fissura terrível -; fui. Cabeça erguida, na humildade mas demonstrando segurança. Um que chegou pedindo coisa de cinquenta centavos pra mim me ouviu dizer "não tenho nada, irmão" e passei direto sem dar maiores atenções. Os outros então, vendo que comigo o ladrão não tem ocasião (a menos que chegue armado e na maldade, coisa que só do acaso e de sua instabilidade depende), me deixaram passar direto.

No boteco, uma garrafa de cerveja matando o resto da sede. a observação do movimento do começo da madrugada na boca quente que ainda é o Parque Dom Pedro. A inevitável comparação mental com o centro de Floripa, tão calmo e tranquilo e ainda assim tão temido por alguns nativos e moradores de lá que não conhecem a vida boêmia dos centros urbanos. Pensamentos voando, planando, boiando, respirando. Suspiro um suspiro que geme solidão e saudade de alguma das mulheres que conheci; suspiro um suspiro que geme solidão e saudade de alguma mulher que ainda não conheço. Vendedores ambulantes circulam. Um grupo de meninos de rua maltrapilhos com pés descalços cascudos e imundos passa, alguns respirando com a boca dentro de saquinhos de plásticos contendo cola de sapateiro e os outros pedindo pela vez de cheirar. Suspiro um suspiro de pura tristeza e compaixão impotente.

Uma prostituta cutuca meu ombro. Oferece um programa. Não tem brilho nos olhos, nenhuma vontade de coisa alguma. Parece um robô programado pra oferecer sexo em troca de dinheiro. Recuso, mas ofereço um copo de cerveja. Por curiosidade, pergunto o preço. "Dez reais, meia hora", ela diz. Analiso suas formas: não é feia, apesar de judiada pela vida louca. Penso no nível de desespero que uma mulher deve sentir pra se prostituir por tão pouco dinheiro. Suspiro outro suspiro de quem nada mais pode fazer a não ser suspirar.

Viro e esvazio meu copo. Me despeço da protituta desejando-lhe sorte e saúde. Passo tão rápido pelo trecho que separa o boteco do terminal de ônibus, que nenhum "nóia" se aproxima. Subo no ônibus que já estava pra sair. Me acomodo e sinto o balançar do carro pelo peso do motorista subindo e sentando na sua poltrona. Ele liga o motor, acelera umas cinco vezes, e toca. Em pouco tempo, menos de meia hora, desço no ponto mais próximo do terminal Sapopemba; dali é pouco menos de um quilômetro até o apartamento dos meus pais.

Sede: um boteco aberto e cinco reais no bolso me estimulam a tomar a saideira. A ùltima da noite: o arremate, pra caminhar levezinho até o bloco de prédios em que moram meus pais. Nessas madrugadas de hoje, o Teotônio Vilela está tranquilo. O tempo mais nervoso, quando tinha ladrão espreitando quem quer que passasse na madrugada pela avenida Sapopemba ou Vilanova Artigas, esse tempo passou, ainda que quem quer passear na madrugada deve ficar esperto - como em qualquer outro lugar da cidade.

Na porta do boteco, uma cadelinha viralata pretinha ainda nova olha nos meus olhos e percebe o canal de comunicação que pode conquistar comigo. Manda a energia de pedido telepático, reclamando de fome. Eu bebo minha cerveja. Olho umas meninas bonitas bebendo com seus namorados. Quando eles me olham, estou olhando a televisão, porque estão passando os gols da rodada do campeonato paulista. As meninas são bonitas e percebem que estou olhando pra elas. Percebo que a encrenca se avizinha aos meus passos. Olho pra porta do boteco. A cadelinha está lá. Encho meu último copo dessa noitada. Minha cabeça alivia, meus pensamentos ficam poéticos. Chamo o garçon - porra, garçon num boteco na frente do terminal Sapopemba? é o cara que atende no bar, o Chavez - e pergunto o preço do kibe. "Um e cinquenta", ele responde. É a conta certa: a cerveja, mais o kibe, cinco reais.

Viro o copo e a cerveja desce gelada por minha garganta saciada. A mente, ainda leve, se abre em canal de comunicação com a cadela na porta do boteco. Pego o kibe, saio do boteco e ela vem atrás de mim: sabe que vai ganhar um kibe.

Sento nos degraus da entrada do terminal Sapopemba. Dou o kibe pra cachorrinha pretinha. Penso na Frida e no Blues. A cachorrinha de rua devora o kibe em duas bocadas. Depois, agradecida, abana o rabinho e vem se aconchegar em mim, pedindo carinho. É novinha; uma filhota crescida. Em poucos meses, se ninguém interceder, ela vai gerar mais quatro ou seis cachorrinhos; desses filhotes, de dois a quatro serão fêmeas, que depois de mais seis meses vão embarrigar e gerar mais cachorrinhos de rua. Mais sofrimentos invisíveis pra história da humanidade. Minha consciência apita, aponta, grita e chora. A cachorrinha da rua deitou sua cabeça sobre meus pés, como gosta de fazer a Frida, que nesse momento deve dormir ao lado do Blues na quentinha almofada, na casa do meu irmão, com as tigelas de comida cheia e água abastecida. Nada posso fazer. Ao menos por enquanto. Então suspiro novamente e digo "fica aí, pequeninha", e vou. Bobagem. Bêbado e entorpecido, esqueci que cachorros de rua, ainda mais novinhos assim, ainda tentam desesperadamente arrumar um lar.

Levantei, ajeitei a mochila nas costas - a pequeninha só me olhando, rabinho balançando, implorando carinho, casa, proteção - e comecei a última caminhada daquela noite de meados de março. A cachorrinha me seguiu o tempo todo; tentei ignorá-la, mas ela insistiu corajosamente.

Ao chegar na rua dos blocos de prédios em que moram meus pais, senti que ela ainda me seguia. Nunca poderia, em hipótese alguma, deixar ela entrar no bloco. Sou hóspede, e meus pais são muito sóbrios e respeitados pra que um hóspede deles entre nos blocos de madrugada, com um cachorrinho da rua. Por mais que a intenção seja boa.

Antes de abrir o portão, olhei pra trás: ela estacou, orelhas abaixadas e rabinho que havia balançado esse tempo todo quieto: olhinhos muito tristes. Senti o canal de comunicação perguntando "e eu, amigo? você não vai me levar?", e eu só pude suspirar um suspiro de impotência e despedida.

Quando fechei o portão e avancei pra dentro do bloco de prédios, a pequenina começou um triste choro de cachorrinha filhote, que sem saber de nada da vida e da existência foi deixada na rua e, daí pra frente, nada mais fazia a não ser esperar algum louco piedoso com coragem passar e a adotar.

E eu só podia suspirar, ouvindo seu choro ficando cada vez mais baixo e distante.

segunda-feira, 15 de março de 2010

INTRODUÇÃO

DEPOIS DO OSTRACISMO EM DESTERRO
Introdução
Esses escritos – após anos de insistência em NUNCA utilizar a mágica ferramenta da internet pra divulgar meus escritos – tem uma direção e uma missão. A direção é registrar a volta pra São Paulo de um paulistano um tanto problemático (que sempre teve uma vida complicada e, mais ainda, passou por momentos difíceis entre 1998 e 2004, passagens que conferem um valoroso troféu moral a um homem raro) e apaixonado pela natureza. A missão é exorcizar os fantasmas que ainda assombram essa cabeça. Afinal, cabeças corajosas que buscam viver – e aprender – não raro se defrontam com espectros de todo tipo que, sem a devida atenção, podem criar ferimentos na alma.

E alma, quando ferida, dói demais. Eu sei bem disso. Minha alma é coberta de cicatrizes. Porém forte por ter sobrevivido. Se eu contar, ninguém acredita. Portanto, vou unir a útil vocação de escritor e contador de histórias com a agradável fortuna de tantas coisas ter vivido, experimentado, sobrevivido e passado. O que é exagero ou licença poética vou misturar propositalmente com o que foi realidade. Se alguém ler isso aqui, fica livre pra tirar suas conclusões. Nesse sentido, as perguntas são bem vindas. Sou todo ouvidos.

Mas o direcionamento desses escritos não é estático; é dinâmico. Aqui também tem o retrato da luta renhida do homem solitário e tímido contra os muros invisíveis da timidez; as frustrações do professor de história de ensino médio, acumuladas ao longo de doze anos de (terá sido assim tão ruim? depende do ângulo analisado...) frustrante trabalho; a volta pra maior cidade da América do Sul após ter morado doze anos em Santa Catarina, sendo a maior parte desses anos defronte ao límpido Oceano, e os últimos três – pra ser mais exato – na trilha da Costa da Lagoa no meio do mato; as dificuldades de estudar na USP morando na COHAB Teotônio Vilela na periferia da zona leste; o choque de um homem de 37 anos inconformado com o nível de imbecilização alcançado pela juventude de hoje que ficou retardada de tanto ver porcaria na TV e na internet sem exercitar devidamente o cérebro; as dificuldades econômicas, as dificuldades sentimentais (a busca que não tem fim por diversão e sexo enquanto não encontro A MULHER); a luta pra manter a guarda de Blue e Frida de forma a zelar pelo bem estar desses dois cães, resistindo obstinadamente – loucura saudável de encarar e negar o modelo do fazer o mais fácil pra fazer o que ordena a consciência, mesmo que seja tão difícil – contra o que dizem as pessoas que se julgam melhores.

Essa literatura, do formato que tiver, será postada da seguinte forma: contos que retratam o período anterior a 1998 sairão com o título "antes do desterro" e o subtítulo que especifica mais o conto; o período entre fevereiro de 1998 a janeiro de 2010 será "durante o desterro" e seu referente subtítulo; e o momento histórico de janeiro de 2010 em diante é o "depois do desterro", com seu subtítulo. E como o próprio título geral do blog aponta, a situação presente, despois do desterro, é mais focada. O antes e durante o desterro virão como explosões nostálgicas e/ou explicações, sob a luz do passado, do momento presente.

Enfim, tudo sobre o que eu quiser escrever escreverei aqui, como um diário. Como um baú de reflexões do mundo ao meu redor, mas tendo o tal direcionamento acima citado, que atualmente é o eixo central da minha vida e que dá nome ao blog. Dessa forma, os escritos aqui registrados podem mostrar os choques de quem viveu anos no mato e agora está da maior cidade da América do Sul, e também um mosaico dos vários prismas desse diamante bruto que sou. Por exemplo, o eu doador que se sacrifica pelas pessoas e que convive com o eu egoísta apaixonado pela vida e sempre disposto a gozar o que a vida tem de bom. Por exemplo, o eu carnívoro que acha uma sacanagem fodida a forma como os parentes mamíferos são assassinados em escala industrial pra matar nossa vontade de comer churrasco, e que (por enquanto, ao menos) adora churrasco. O eu que ainda é socialista apesar de ser costumeiramente taxado de vendido pela ala mais radical da esquerda e de radical pela direita (essa ala desconsidero ao mesmo tempo em que tenho como alvo dos meus embates, os meus antagonistas de verdade, honra que não merecem, mas fazer o que?, se considero esses imbecis fascistóides co-responsáveis por boa parte do que não presta no mundo) que sempre SEMPRE (não sou um monumento à justiça e nem quero ser) é execrável.

Comentários são bem vindos, mas prefiro trocas de idéias, porque como a grande pretensão desse blog é fazer literatura de algum tipo, não me interessam as interpretações de quem quiser ler esse troço. Pensem o que quiserem.