DEPOIS DO DESTERRO: NOTÍCIAS DO COTIDIANO MAIS OU MENOS COMUM
Além de calar o coração (pra não ficar me afeiçoando por cachorrinhas de rua e meninas novinhas inacessíveis ou mulheres maduras e tesudas que vejo no ônibus e nunca mais verei), preciso desligar os ouvidos. Senão, vai ficar ainda mais difícil cumprir a carga de leituras que devo.
É meu cotidiano, agora, depois do ostracismo no Desterro. Exercício de paciência constante. Desempregado, tenho a manhã pra estudar. Os textos que preciso dominar na USP são mais longos e complexos do que os textos da UDESC. Oito da manhã, “bom dia mãe”, “bom dia filho”, e encho a xícara de café preto. Café da mãe é sempre uma delícia, tem a carga de amor materno inerente às coisas que as mães fazem (depende da mãe e do tanto de amor – e a qualidade desse amor – que a mãe projeta) e assim desperto, ligado, termino o café e pego o texto de história ibérica. História de Portugal: sinto-me obrigado a fazer uma boa figura nesse curso, afinal, luso brasileiro que sou, ouço histórias míticas de Portugal desde miúdo.
Autor português; não é fácil, mas também não é difícil, desde que me concentre. Estou motivado e curioso. O autor analisa o processo peculiar de centralização política em Portugal, problematizando questões que pareciam simples. Gosto disso: desmonta as noções seguras que eu carregava. Inicio, concentrado. Espero terminar a primeira leitura por volta de dez da manhã, pra sair e arrematar a segunda leitura no ônibus.
Nada é tão fácil assim pra quem mora na COHAB Teotonio Vilela. Além disso, minha mãe não está habituada a ter quem a ouça: estou sentado com o texto aberto, lendo, os óculos postados na frente dos olhos maduros, caneta atrás da orelha como convém a todo vivente com sangue lusitano, e minha mãe precisa falar. Então começa a história do falso seqüestro da filha da dona Maria “coitadinha, saúde tão abalada, ainda mais essa, como é que pode, alguém tão mau assim, e o seu Antônio quase tem um treco do coração e então a Milena chegou e a dona Maria e o seu Antônio perguntaram, ‘ué, você não foi seqüestrada?’”, e a Milena respondeu “seqüestro? Que papo é esse?”, e eu respiro fundo. Penso na problematização formulada sobre o alcance da autoridade real no território português entre os séculos XII e XVI que o Joaquim Romero Magalhães expõe.
Minha mãe ainda não terminou de contar o caso. Intervalo para Joaquim Romero Magalhães. Não digo nada, apenas espero; quando ela termina, ofereço minha ponderação sobre o ocorrido, afinal li sobre isso – falsos seqüestros – algumas vezes. Entendo minha mãe: ela se preocupa. Demais. Digo que se alguém ligar dizendo que seqüestrou alguém da família, ela deve ligar no celular; se for pra mim e eu estiver em aula vai estar desligado, e ela insiste depois. “Não pode se apavorar, mãe, nem se a ameaça for pra um dos netos, sempre mantém a calma e enrola o cara, pede pra ele ligar depois e nesse meio tempo liga pros moleques, pra mim, pros outros filhos e pro papai, só não cai nessa, que o golpe é manjado e fácil de desmontar”, e vejo os olhinhos assustados e cansados aliviarem.
Ela percebe minha necessidade de estudar e me deixa ler. Parágrafos vêm; não é uma leitura complicada e vou desenvolvendo a compreensão do texto sem grandes obstáculos porque conheço outros autores portugueses. Em pouco tempo já são nove horas da manhã: a COHAB desperta com toda sua vida – até então, apenas alguns diálogos em vozes mais altas exigiam mais esforço de concentração – e as pessoas que ainda não saíram ao trabalho ou trabalham em casa ou estão sem trabalho ligam seus aparelhos de som. Ritmos populares disputam a mais alta difusão, saindo das janelas para as escadas e corredores e atingindo a área comunitária dos varais. As mais potentes caixas de som levam os acordes até as garagens. Esforço mais ainda minha concentração. Fica cada vez mais difícil fazer a atenção driblar a banda calypso e a banda deja vu, os pagodes cheios de teclados e gemidos desafinados e tanta descontração que beiram a idiotice, e as estúpidas canções sertanejas que a mídia força o povo a gostar. Entre o intervalo de uma e outra música, ouço um corajoso que tenta ouvir seu Pink Floyd (é o Gazumba, roqueiro das antigas, veterano de COHAB), mas que, por não ter tanta potência nas caixas de som, acaba vencido e dessa forma cava ainda mais funda sua trincheira de resistência heróica, flertando com o risco da adicção por álcool e a impopularidade que cultiva sem se importar e que não o deixará abandonado pelos vizinhos quando precisar (bairros pobres são exemplos de solidariedade, apesar da violência costumeira e das carências diversas).
COHAB Teotonio Vilela: 5.240 apartamentos e 1.748 casinhas, cada lar com menos de 45 metros quadrados divididos em dois dormitórios sala cozinha e banheiro, tudo na área de 978.473 metros quadrados onde vivem oficialmente 34.940 pessoas, mais de 40 mil segundo os moradores que mais pensam na realidade do conjunto habitacional que virou bairro. A arquitetura projetada pelas elites dominantes (impossível fugir do termo chavão, a menos que crie um termo novo que as defina, tipo “brafitongas” ou “cudiampolas”, mas não, nada melhor do que dar o nome que tem as elites dominantes, o que me obriga a usar o termo batido “elites dominantes”; na real nem acho elites dominantes um termo batido, afinal, as coisas são o que são, apesar da mídia controlada pelas elites dominantes forçar a idéia de que o termo definidor de quem SEMPRE governou os governos do país está ultrapassado) comprova com folgas oceânicas a tese do “apartheid social” brasileiro: ricos nos bairros dos Jardins e condomínios fechados, onde abundam cinemas e teatros e escolas e universidades e parques com segurança policial cortês, e os pobres nas periferias, onde abundam botecos e quebradas e a segurança policial violenta e oprime.
Tem gente da periferia que consegue quebrar o cerco e furar a bolha: abnegadas pessoas que estudam e trabalham, com todas as dificuldades existentes, e insistem e persistem e perseveram. Não conheço ninguém aqui profundamente; morei em outro estado nos últimos doze anos e não tenho tempo de fazer amizades aqui, onde por enquanto estou hospedado. Nesse período, como todo mundo sabe, aumentou o número de pobres estudando em faculdades e cursos técnicos, ainda que os números estejam longe do ideal. Sou um caso a parte, nem melhor e nem pior, mas diferente, já estava na universidade em 1995, e não me formei ainda por uma conjuntura de fatores que não excluem minhas incompetências. Outras pessoas da COHAB também poderiam e podem ingressar na USP, especialmente na FFLCH. Mas não conheço ninguém, por enquanto. Na USP tem gente de São Mateus, do Jardim Sapopemba, e de outras periferias da cidade. Mas não acho que possa existir lugar mais dificultoso pra um estudante do que a COHAB, onde as paredes são finas e as famílias estão empilhadas e desprovidas de cultura de estudo, como minha família TINHA quando vivia na Mooca, Na Vila Prudente e na Vila Formosa, em casas de dimensões que permitiam a solidão necessária aos estudantes.
Coloco tampões de neoprene nos ouvidos; costumo usá-los pra dormir, pois cinco da manhã os despertadores dos apartamentos ao redor do nosso despertam e as pessoas falam e abrem gavetas e aqui, nessa arquitetura pra manter os pobres morando sem conforto e longe dos centros econômicos e culturais e políticos, por mais que as pessoas tentem existir em silêncio, não podem: todo passo faz barulho, e quanto maior o silêncio, mais alto fica o barulho mais mínimo.
Mas é um saco: dormir é uma coisa. Ter coisas enfiadas nos ouvidos pra poder ter silêncio e se concentrar é outra. Se fosse uma emergência, faria um esforço. Ainda não é.
Nove e pouco da manhã. Tomar banho, arrumar a mochila e pegar o caminho. Da zona leste pra a zona oeste. No ônibus, do Terminal Sapopemba até o Parque Dom Pedro II, terminarei minha leitura preliminar do texto.
Avenida Sapopemba e Nhanha Melo. Buracos no asfalto, o sacolejar do ônibus. O sol batendo forte nas cópias xerocadas do texto. Tudo dificulta minha leitura. As pessoas falando alto, elas falam alto demais porque o motor do ônibus também não é baixo. Avenida do Estado, trânsito parado. Ônibus em primeira e segunda marchas: acelera um pouco e freia seco em seguida, tranco, não posso manter a cadência da leitura, o texto treme, minha cabeça treme, treme o ônibus, treme meu corpo e tudo o que está dentro do ônibus. Cheiro de fumaça de poluição. Leitura não rende. Passa uma hora de viagem e a Avenida do Estado não termina. Um leve desespero tenta crescer dentro de mim. Respiro devagar só pelo nariz e controlo os nervos.
Hoje o desespero não me domina por pouca coisa. Não consigo ler o texto, então não forço. Participarei da aula como pescador de informações; na semana da páscoa não tem aula, então poderei - espero - colocar a leitura em dia. Se fosse literatura sem compromisso, talvez conseguisse concluir a leitura, ou ao menos avançar.
É quase meio dia quando chego no Parque Dom Pedro II. Meio dia e quinze o ônibus pro Butantã USP sai lotado. Não me sento: suporto a lotação. Meto a mochila embaixo do banco do cobrador e seguro nas barras. Suportar a lotação com as pessoas se empurrando nas minhas costas acaba sendo um exercício para os braços. Do Parque Dom Pedro II à Praça da República, trânsito paulistano, quase meia hora: meio dia e quarenta e cinco a partir da rua da Consolação. O tráfego flui um pouco mais solto. Na Avenida Rebouças, no ponto do Hospital das Clínicas, parte dos passageiros descem, e sobem outros. Meu estômago avisa a necessidade do almoço.
(....)
A higiene bucal depois das refeições também é sagrada: prometi nunca mais a relegar a plano inferior por necessidades de cumprir horários. A fila do bandejão demora mais que a refeição em si. Ao menos encho a barriga de comida balanceada, apesar dos boatos referentes ao salitre.
Chego na aula e a professora já começou. Assisto, ouço, tomo notas que prometo checar depois, quando terminar a leitura como deve ser feita. É desconfortável assistir aula sem a devida leitura do texto. Paciência. No intervalo, um café. Na segunda parte da aula, um documento do século XV sobre a formação precoce da monarquia centralizada portuguesa. Armadilhas do discurso; exercício fácil para calouros de história: capturar, nas linhas escritas por Damião de Góis, o reflexo da idade média. Após a primeira parte da aula, ficou fácil perceber que a centralização política portuguesa não chegava a ser absolutista. Três calouros apoderam-se das verbalizações. E elevam vozes, querendo atrair a atenção e demonstrar conhecimentos. No calor da exposição, os três garotos calam o restante da sala. A disputa se instala. Ouço e pondero. Ao chegar no meu limite, paro. É demais, como diria Belchior. Vão tomar nos seus cus seus chupadores de piroca, como diria Bukowski. Arrumo minhas coisas, levanto e saio. Preciso esticar a espinha e retesar os músculos. É dia de cervejada da Atlética, em prol de fundos pro handebol feminino. Tenho obrigação de colaborar: é uma linda equipe, de muita competência. Antes, necessito suar, sentir a sede necessária pra beber algumas cervejas bem geladas.
Nos fundos da FFLCH, as árvores abrem um intervalo na sisudez acadêmica. A poucos metros de mim, jovens estudantes fumam seus baseados. Não atrapalho a viagem dos outros. Tenho minha própria viagem, sem maconha dessa vez (faz tempo). Tiro o tênis. Faço os alongamentos sagrados. Estralo a espinha e os ombros, o peito e o pescoço. Estico os músculos e permaneço em alongamentos variados, um pouco pra cada membro alongado. Encho os pulmões com o ar fresco da tarde, os olhos fechados experimentando o sabor do oxigênio. Alivio o espírito, pensando nas coisas que deixei em Floripa e nas coisas que aspiro aqui. Me aproximo de uma árvore: “com licença, amiga, você é forte, me dá licença de subir no seu corpo de madeira viva, fica tranqüila, subo com carinho e respeito” e começo a subir, com cuidado pra não cair e não a machucar.
Numa forquilha grossa, consigo sentar confortavelmente, pela excelência do formato da forquilha e grossura dos galhos. O ar livre é puro, sem os vícios da sala de leitura, sem o clima pesado dos ambientes internos das faculdades e seus corredores onde desfilam doutores e pretensiosos estudantes. Estou no alto. Poucos olham pra cima: grande parte dos acadêmicos está ocupada com seus umbigos, e outros, com objetivos importantes. Descobri meu refúgio. Acaricio o tronco da amiga e sussurro baixinho no ouvido arbóreo as palavras do monge José Maria, herança que o Contestado deixou, “árvore é quase bicho e bicho é quase gente”, desço, pego minhas coisas, coloco a mochila. Depois subo de novo; na grossa forquilha, tiro os tênis e a mochila e encaixo as coisas numa outra forquilha, menor. Pego o texto que não havia terminado e retomo a leitura de onde havia parado, confortavelmente escorado no grosso galho da frondosa árvore da qual ainda não sei a espécie.
Enquanto o sol brilhar, vou ler o que devia ter lido horas antes. Ainda é tempo, sei. Afinal, aprendi, nesses anos todos, que errar o caminho não é se perder: é conhecer novas estradas.
Outro dia, organizo melhor minha leitura. Da forma que puder, sabendo que preciso calar meu coração e desligar meus ouvidos. Talvez precise aumentar meu nível de egoísmo. Certeza cruel e cínica: preciso sair da casa de meus pais. E morar mais perto da USP.
quarta-feira, 24 de março de 2010
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