PERDIDO? FEITO NÁUFRAGO?
A pessoa não pede nada e então nasce. Desse momento em diante, sofre um controle cada vez mais rígido, imposto pelos pais, pela civilização, pela escola, pela sociedade. Muita gente consegue resistir ou se adaptar à opressão. Muita gente desmorona ao peso das obrigações logo no começo da escalada. Outras pessoas sofrem mas não se entregam, ainda que dêem cabeçadas marteladas e quebrem braços e pernas, e sofram feridas de espinhos no coração flechado por cupidos loucos e irresponsáveis.
Logo chegam responsabilidades cada vez maiores. Isso porque pouco tempo antes era normal chorar em silêncio no escuro do quarto, de desespero por causa de uma reles prova de matemática durante a sétima série. Mas logo chegam – impiedosas como doenças incuráveis que matam aos poucos – responsabilidades cada vez maiores. A necessidade biológica de amar sem necessariamente encontrar correspondência, o que nem é tão grave, por representar aprendizado que toda pessoa deveria experimentar ao menos três vezes na vida. E, inevitável como o passar do tempo, a imperativa necessidade de trabalhar pra ganhar dinheiro, coisa tão fundamental quanto respirar, quando se é alguém oriundo da classe trabalhadora, enquanto se procura o que fazer da vida pra ganhar o pão. Sim, porque sem trabalho não há dinheiro; sem dinheiro, as possibilidades encurtam. Não se pode vestir boas roupas e se apresentar bem pra sair e encontrar maiores perspectivas. Não se pode sair de casa – pagar ônibus e metrô – e assistir apresentações artísticas diferentes do que se vê na televisão – instrumento maléfico de emburrecimento e estupidificação de inocentes ou acomodados – e assim não se conhece outros tipos de música, de dança, de teatro, cinema, poesia e literatura, esportes e costumes. Não se consegue investir no aprimoramento das virtudes (ainda que para o benefício da minoritária elite econômica e intelectual) que abre espaço ao desenvolvimento profissional de uma carreira, do que fazer pra ganhar a vida. Não se pode capacitar ao exercício das funções exigidas pela civilização material em tempos de globalização e flexibilização dos direitos trabalhistas sem poder ganhar o mínimo de dinheiro pra adquirir ferramentas ou comprar o aprendizado técnico necessário pra poder trabalhar e ganhar dinheiro pra pagar casa, comida, cerveja, diversão, roupa e vacina pras crias e pros cachorros.
A maldição da espécie humana. Tentar alcançar os sonhos enquanto se cumpre as obrigações reais. E assim morrer um pouco por dia.
Ainda que vez por outra o sol brilhe em cores diferentes que façam rebentar miríades de flores e mil cheiros de ternura, o que sobra às mulheres e homens embrutecidos pelas necessidades existenciais não resolvidas é a crua brutalidade. E o vazio. Por vezes a solidariedade. E a maioria das vezes, a competição egoísta num campo em que a sociedade prega virtudes cristãs ao mesmo tempo em que premia justamente quem menos se sensibiliza com o sofrimento ao redor. O cinismo e a hipocrisia vão se tornando ferramentas básicas de quem consegue alcançar conforto material e se isola em suas salas climatizadas em frente às novelas e noticiários comprados por empresários criminosos que ostentam auréolas artificiais, e depois mais novelas e programas de reality show. Enquanto engorda até a morte, o cínico esquece dos famintos que pedem esmolas na esquina de sua casa.
Quem se considera sábio alerta que as coisas são desse jeito mesmo. Que ser contra o sistema não é proibido, só que pode ser caminho curto pra loucura e solidão.
Mas as verdades, das poucas que existem, na verdade são muito relativas. Portanto, nem todo homem que se considera sábio o é de verdade. Muitos que pensam ser estão muito mais próximos da pura imbecilidade. E muitos que por sua vez renegam níveis mais elevados de conhecimento ou sabedoria são tão vazios quanto a vida dentro do peito de um cadáver seco.
Sim: quem tenta elevar-se corre diversos riscos. De fracassar é o mais comum e menos arriscado. Daí, quanto maior é a elevação pretendida e os obstáculos enfrentados, aumentam os perigos. Enfrenta-se a solidão e a ameaça das loucuras mais dementes. Aceita uma carga de sofrimento inerente à vida ascética de quem se rende a um período de forçado celibato pra estudar e tentar alcançar conhecimento e assim abrir portas de novos horizontes. Nega-se a certeza de que as regras beneficiam quem já nasce em família poderosa, e que os dados do jogo estão viciados. Faz a aposta possível sem contar que o baralho tem cartas marcadas e a remuneração dos estudantes é miserável justamente pra que só quem tem bom berço possa estudar e alcançar a ciência elevada pra combinar bons verbos em soluções estéticas vanguardistas defendendo teorias inovadoras e exibindo linguagens artísticas pioneiras.
E a pessoa nem pede nada quando nasce. Porém nasce. Cresce. Aprende a viver, ainda que seja doloroso aprender, pela violência intrínseca ao processo de ensino-aprendizagem. Toma marteladas na cabeça e dá cabeçadas em marretas e paredes, chuta postes e escala muralhas abstratas pra recitar poemas em serenatas às garotas protegidas por quartos perfumados, escovando longos cabelos na frente de espelhos em vésperas de noivados confirmados. E, já que se vive e se respira, portanto, pensa. Ousa.
E, almejando mais da vida, conclui que a vida não é tão simples, e sim, que se trata de uma existência. Pisa duro. Cerra os punhos e os dentes. Abaixa a cabeça quando necessário e sobe o quanto pode na escalada rumo à transcendência dos conhecimentos.
Quando pode, alivia. Pisa com os pés delicados em bailes intergaláticos, acaricia bruxas, ninfas, e fadas, encoxa putas voluntárias voluntariosas, e beija e come mulheres fêmeas, enquanto sorri extasiado e levanta a cabeça pra aproveitar cada momento de deleite, respirando fundo o doce oxigênio do fugaz prazer antes de voltar à escalada. E novamente ter de pisar duro. Cerrar punhos e dentes enquanto faz cara de mal e esconde as lágrimas inevitáveis por quem não pode salvar. Pelo mundo, pelas árvores, pelos bichos e pelas pessoas. Ao menos enquanto se escala não pode olhar pra baixo. Indiferente, deve se concentrar na subida. Até o próximo momento de esquecer a crueldade e novamente pisar com pés delicados em bailes intergaláticos, ou chorar a dor de quem sente as dores dos outros. Ainda que tais oportunidades fiquem cada vez mais escassas conforme os anos passam.
E se passam muitos anos, sensações de fracasso atormentam com maior constância. Aproveitam certos desesperos inevitáveis e torturam, tentando conduzir quem escala ao fracasso ou à loucura e à solidão atroz. Rareiam momentos de sorrisos despreocupados, não porque diminui a vontade de sorrir, mas sim pelas oportunidades que se esvaem, frias e levadas pelo acaso e pelas intempéries, pela fome e pelas vontades insatisfeitas.
Tem-se a sensação de ser um náufrago? Faminto e com sede, apavorado e condenado ao esquecimento em agreste paragem desconhecida do mundo?
Nada mais do que sensação passageira, como todas, à exceção da doença terminal e da morte certa! Afinal, muitos foram as pessoas, mulheres e homens que não se renderam aos vaticínios da civilização material! E foram escravos e soldados forçados, escravas e prostituídas, operárias e operários labutando e se fodendo dolorosamente dezesseis horas ao dia a vida toda, e, ainda assim, lutaram. Em honra de toda essa gente que carrego dentro da cabeça, da qual me sinto, com orgulho, espécie de herdeiro bastardo, ao menos isso prometo fazer: lutar, sem desistir.
Lutar com as armas que me são lícitas e que não me desonrarão (a mentira, a dissimulada farsa dos namorados desesperados ou mimados filhos de papai e mamãe burgueses, a traição, a covardia, o envenenamento dos ambientes públicos pra benefício próprio...). Ainda que muitas vezes precise fazer mais esforço pra lembrar de respirar bem devagar enchendo o pulmão de oxigênio. Que seja necessário repetir mil vezes, em pensamento, que o mal – a desigualdade das oportunidades pelas quais almejo, a empáfia e a soberba dos juvenis burgueses que se julgam sábios por usarem chinelos havaianas e me tiram por louco, por defasado, por superado, por mentiroso e coitado – serve não apenas para o mal em si, mas também pra engrandecer o bem, que é a motivação pela qual escolhi esse caminho tão comprido e que me permitirá, um dia, mesmo que distante, colaborar pra ajudar as pessoas que amo, trabalhar pra fazer a revolução que acredito, plantar as rosas vermelhas e as orquídeas sabor baunilha e as damas da noite, as pitangas, mamoeiros, mexericas e goiabas.
Como diria Marx, “ os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua própria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas ou transmitidas pelo passado”. Certo, velho: farei minha história como puder, do jeito que as coisas maiores – pois quem governa o mundo, sobretudo, é o acaso – permitirem e, caso não permitam, usarei do improviso dos artistas pra defender meu quintalzinho.
E como diria Vitor Hugo, “quem não luta não vive”.
Eu vivo.
segunda-feira, 5 de abril de 2010
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