sexta-feira, 19 de março de 2010

DURANTE O DESTERRO

DIAS ASSOMBRADOS: NA BEIRA DO PRECIPÍCIO DO INFERNO

Era meu primeiro ano no Desterro.

Com a alma provisoriamente amputada e o espírito doente, completamente perdido e sozinho numa cidade desconhecida, procurava garotas de programa acessíveis ao meu bolso. Sabia exatamente o que procurava: e não era apenas sexo com uma profissional. Existiriam orquídeas no deserto estéril? Não custava procurar. Ao menos a aventura é garantida, quando se considera desventuras como aventuras por serem irmãs, apesar de tão opostas. Procurava nos lugares errados e com as pessoas erradas. Erradas para o que eu procurava, apesar da possibilidade da existência comprovada da fortuna materializada em vida de mulher, apesar de, naqueles dias, eu não poder conservar a fortuna que desejava tanto encontrar.

Junho em Floripa. O vento sul entrava por baixo das vestes das gentes mal agasalhadas, como eu, resolvido a suportar o frio que apesar de suportável não era agradável; com ceroulas e blusa mais grossa, o frio desagradável fica gostoso, pra quem gosta.

Eu gosto da vida: gosto do frio e do calor, do dia e da noite, e sei como as chuvas são importantes. Sempre gostei da natureza e da vida. Isso me salvou quando mergulhei no inferno.

Não conseguia dormir. As aulas da manhã seguinte preparadas, assuntos controlados. A cabeça cheia de sonhos, o coração louco mendigando carinho, as bolas explodindo de tanta coisa represada. Os classificados do Diário Catarinense ofereciam um variado cardápio. Se eu soubesse como, procuraria o algo mais que sexo num lugar onde pudesse encontrar. Mas perdido, totalmente perdido, encarava as garotas de programa como terapeutas não convencionais. Se econtrasse o amor verdadeiro, não saberia reconhecer e cultivar. Doente. Estava doente e não sabia.

Havia uma especial. Ela me amedrontava, ao mesmo tempo que me dava paz. Me oferecia sua vida numa bandeja, e isso muito me honrava. Meu medo era apenas meu, e refletia o estado deplorável que eu estava.

O conhaque descia rasgando a garganta. Os anúncios ofereciam mulheres como fossem comida no cardápio de um restaurante. Eu escolhia aleatoriamente, e ligava em seguida. Dependendo da vibração da voz, anotava o endereço e organizava o trajeto pelo qual passaria, conhecendo as moças – analisando o material humano da terapia – e decidindo se ficava ou não. Tentava encontrar uma substituta pra Suzana, a moça que me daria sua vida e da qual tinha medo.

Suzana não era seu nome verdadeiro. Se eu perguntasse ela diria. Mas não quis criar um vínculo tão poderoso assim. Medo cagão. Era doce e meiga a moça de Chapecó – oeste de Santa Catarina, terra devastada pela agroindústria que enriquece nove famílias e empobrece novecentas mil – e apesar de me dar muito bem com ela, evitava procurá-la. Quem precisava da terapia era eu. E depois da transa, ela costumava me usava como terapeuta. Tentava induzir, levemente, que eu a levasse comigo pra casar, libertando sua vida da escravidão que vivia. E eu tinha medo. Ou melhor, não tinha condições. Tinha uma condenação pra pagar. Ela até poderia me salvar. Mas eu não podia alcançar as estrelas respirando a poeira do chão.

Nenhuma restrição moral em casar com uma ex-prostituta; minhas restrições eram com o casamento em si. E por outro lado, meu estado perturbado – eu carregava um forte estresse pós-traumático que me empurrou à depressão, que eu evitava porque não sei fazer o tratamento correto, essa era minha condenação – impedia que eu tivesse qualquer sentimento de amor por alguém. Eu estava morto em vida.

O conhaque descia rasgando a garganta e abrindo a mente pra loucura. As aulas da manhã seguinte já estavam preparadas e os assuntos controlados. Só não sabia se poderia encarar cinqüenta adolescentes, depois mais cinqüenta, depois mais cinqüenta e depois do intervalo mais cinqüenta e depois mais cinqüenta, das 7:30 ao meio dia. Na hora sempre conseguia, proezas que a necessidade fundamental de ganhar dinheiro força o peão a conseguir, com cambalhotas, caretas, ameaças, polêmicas, datas e nomes e liçoes de moral que eu acreditava mas não seguia.

O cartão telefônico já estava definhando, e eu não tinha encontrado nada. Já era perto das duas horas da madrugada. Dali a duas horas, os pescadores iriam ao mar, redes em espera dos cardumes de tainhas vindas do sul, homens brutos misturados à água salgada e gelada e algas que aderiam nos barbantes da rede junto dos peixes sufocados pela falta de água - homens e algas em mistura embrutecedora, homens e algas, areia e sal e a ameaça da morte constante.

Na minha insignificante vida a coragem estava ausente. Não havia mais nada a fazer. O bar estava fechando. Com certa lábia consegui fazer mais uma dose, a saideira. O conhaque desceu rasgando e eu não tinha mais pra onde ir. Minha pesca foi infrutífera, minha rede devia estar rasgada, ou não era noite de peixe, como assim é a vida dos pescadores que não raro lançam-se ao mar e voltam com os barcos vazios de pescado.

Todavia, eu tinha pra onde ir; respirei fundo e me preparei pra Suzana e seus sonhos de príncipe encantado libertador. Mas nos dávamos bem, eu precisava do que ela me daria, porque sempre me deixava inerte de tanto cansaço e satisfação. Quase duas horas, madrugada fria, melancolia e as bolas cheias. Poderia cochilar um pouco antes das seis da manhã, se ela me deixasse ficar.

O numero de Suzana estava salvo no meu celular. O acaso jogou ao meu favor: ela estava disponível e a voz vibrou energias positivas ao me ouvir.

Pouco depois, entrei no prédio em que ela morava e trabalhava, escravizada do sexo. Mentalizei o que faria. Na porta, toquei a campanhia. Ela atendeu, fenomenal: vestia um conjunto de jeans calça e blusa colados, os maravilhosos ombros e boa parte das costas de fora, a pele morena lisa e cheia de vida, beleza explorada e inocente, vítima dos homens, e ainda assim tão forte, tão vigorosa. Me convidou a entrar, “olá, tudo bem?”, “tudo bem, e você?”, “ah, eu vou bem, mas queria um pouco de carinho seu...”, e ela sorriu, “entra, entra”, e então ficou na minha frente, olhos nos olhos, nada mais a dizer. Ela sabia qual sua função e eu sabia tudo o que poderia obter com os cem reais que deixaria com ela.

Um abraço. Eu precisava de um longo e forte abraço, e Suzana sempre me fazia bem. Abraço, abraço!..., e por alguns minutos eu sumia, desaparecia, minha alma fazia tenção de brotar novamente regenerada e forte, e meu espírito aliviava as dores, como doente desidratado recebendo soro poderoso e salvador; por alguns minutos eu cogitava levá-la comigo do jeito que ela pedia, tipo Tolstoi em “Ressurreição”, mas com leveza, sem culpas cristãs e nem caridade. Uma troca lucrativa pra nós dois: eu teria pra quem voltar pra casa depois das aulas e das andanças, e ela seria uma esposa bem mulherzinha de casa, agradecida e salva depois de tão cansada da vida horrorosa que foi levada a viver.

Hoje é fácil perceber que naquele tempo Suzana teria sido minha salvação. Eu estava na borda do precipício. Poucos meses depois, entraria no inferno e passaria lá alguns anos. Eu estava com a alma provisoriamente amputada e o espírito doente. Cego pela demência temporária que estava vivendo, não vi o que era tão claro. Seria uma bela troca de salvações: ela me salvando de um lado e eu a salvando de outro, pra depois de um indefinido tempo, irmos cada um pro seu lado, mais forte e livres e preparados pra vida.

Ela me beijou na boca com apaixonada fúria e pavor. Como sempre fazia comigo, me fazendo sentir tão especial, e se abandonando nos meus braços, e nós desabando na cama como se o mundo estivesse pra acabar – e estava mesmo, pois nosso mundo juntos duraria apenas duas horas, mas seriam duas horas de amor, sim, amor, um tipo de amor que os moralistas desconsideram mas que é amor sim, amor de qualidade e milagroso como todo sentimento que é bom – e fomos morrer e renascer três vezes.

Suzana deitou a cabeça no meu peito e relaxou. Meio que cochilávamos, conversando baixinho, “quer ficar? , pode dormir aqui comigo”, “eu posso?, não vou atrapalhar?”, “não, essa hora não vem mais ninguém, e gosto de dormir assim, abraçadinha em você”, amostra grátis e breve do paraíso, me deu um beijo estralado no peito e se aconchegou novamente em mim, sensação que me abandonou em São Paulo uns anos antes, quando outra moça com outra vida me fez aprender chorando como é ser homem, e como um homem deve sobreviver às porradas que as mulheres dão.

Flores e crianças, café com pão e frutas, vizinhança conhecida e pacata, pai trabalhador rural e mãe costureira. Suzana tinha família boa e não se incomodava com a pobreza. Não tinha grandes ambições, mas queria comprar a terrinha para o pai cultivar. Linda, estonteantemente linda aos dezesseis anos, acostumou-se com as amigas dizendo que podia ser modelo. Foi quando o bandido apareceu: homem maduro, bem vestido e bem falante, dizendo ser advogado e empresário, prometendo promessas que resolveriam a vida da família toda em poucos meses. Suzana pediu licença pra ir, a mãe e o pai não deixaram. O criminoso bem falante sugeriu a fuga: trabalho honesto, ele planejava as propagandas em que a morena de olhos verdes se encaixava, prometendo pra logo a volta pra casa, com dinheiro, e daí a terra, o sítio, a máquina de costura pra mãe.

Mentiras. Violência. Dívidas escravizadoras, documentos retidos, ameaças. Bandidagem. Cobrança de dinheiro: atendendo 24 horas por dia, conforme recebia ligações e clientes, trabalhando todo dia, pagava o relativo sossego que conseguia. Pagando o que lhe era cobrado, nem precisava sofrer mais ameaças.

Corpo cochilando e a cabeça pensando automática: dorme, menina, com a cabeça no meu peito – apenas meus dedos movimentavam lentamente levemente, carinhos nos cabelos de cachos morenos – e escuta meu coração pedindo desculpa: não posso fazer nada. Também sou criminoso. Ajudo a manter sua escravidão. Omisso, tenho pena a pagar.

Poucos meses depois, não encontrei mais Suzana. Procurei até ficar mais desesperado: por apenas mais um pouco de puro alívio egoísta e descartável. Não achei. Já havia entrado no inferno. Demoraria alguns anos pra achar a saída.

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