Agora já é depois do desterro. Não é o momento de ruminar acontecimentos ocorridos nos últimos doze anos de santa catarina: cada coisa no seu tempo.
O presente em são paulo. Por mais que eu tivesse me preparado pra essa mudança, o choque é inevitável. Não apenas por ter vivido os últimos três anos numa trilha no meio do mato (onde conheci um pedaço de algum tipo de redenção), mas pelo estilo de vida e o ritmo das coisas que aconteciam comigo lá no sul, numa cidade que, apesar de capital de estado, é pequena e provinciana.
Mas as mudanças trazem consigo sempre inevitável carga de imprevisibilidade; portanto, devem ser aproveitadas da forma mais positiva possível.
Passado o primeiro instante de volta à São Paulo, o estigma da impotência do protagonismo que me habituei em Santa Catarina me assalta. É o nada poder fazer quando a consciência apita, aponta, grita e chora.
Nada de errado em morar de volta com os pais; estamos nos virando muito bem, pai e mãe dando cotidianos espetáculos de paciência, e eu nem fico muito tempo em casa(embora nas manhãs em que tentei estudar na COHAB não tenha me dado muito bem: os minúsculos apartamentos, logo de manhã, explodem cada um com um ritmo musical que faz sucesso nas rádios populares, dificultando demais a concentração nos densos textos da faculdade de história, me empurrando ao caminho da Cidade Universitária, onde leio, estudo, me alimento no bandejão e respiro o ambiente intelectual que, vez em quando, também força demais a paciência do estudante proletário aqui), pois vou conseguindo manter a tranquilidade nos lotados ônibus e metrôs que pego pra ir e voltar da USP pra COHAB Teotônio Vilela - quando especialmente nas noites, nos retornos, as aventuras são constantes.
Mas até aqui (por razões de carência de vitaminas A, C, D, M e S), quando estou numa festa na USP, ou em meio de colegas bebendo cerveja ou conversando, em algum momento bate o desespero. Faltam vitaminas, sem elas não posso ser feliz. São elas as vitaminas A (amor), C (carinho), D (dinheiro), M (mulher) e S (sexo). A falta delas abre caminho pros tormentos da existência. Então não posso ficar parado. Os caras são legais; oferecem cerveja, baseado, convidam pras festas e baladas universitárias; nas baladas as garotas são sensacionais, e até um careca quase coroa como eu pode se dar bem. Mas não posso ficar. A culpa do desemprego, de estar dando despesas pros meus pais e pro meu irmão Roberto(que está hospedando Blues e Frida enquanto não me acerto aqui na metrópole), a falta de perspectiva e a necessidade impiedosa de não gastar mais dinheiro do pouco que me resta do que tenho guardado me torturam. "Valeu, rapazes", digo, "tenho que ir nessa", e, macaco véio que sou, sempre tenho algum argumento irreprensível pra sair fora.
E toco a caminhada pro ponto de ônibus. É melhor ir embora da USP pra zona leste de noite, após as 21:00 horas. Quase meia noite; macaco véio, sei que no Parque Dom Pedro tem ônibus pra São Mateus até uma e pouco da madrugada. Sem trânsito, do Butantã até o centro, o trajeto leva pouco mais de meia hora.
Parque Dom Pedro: não é um lugar tão feio, quando se conhece. Acho que já foi pior em tempos dos anos 80 e 90, ainda que hoje também não esteja de todo tranquilo. O cara que anda sozinho nesse lugar tem que ficar esperto. Se quer se arriscar, deve se arriscar com cuidado. No ponto do ônibus pro terminal São Mateus, o horário dava mais meia hora de espera. Minha cabeça entorpecida e cheia de coragem me fez observar ao redor: um boteco aberto. Caminhar até lá, atravessando a rua e cruzando parte do Parque Dom Pedro fora do terminal de ônibus é uma aventura que não tem preço e parece loucura pra muita gente. Coisa do tipo que eu gosto.
Fui. Logo na saída do terminal de ônibus, malacos da rua, os "nóias" e tipos assim encaram firme e feio, esperando um vacilo pra acharcar, assaltar, espancar, se for preciso matar por qualquer dez reais - uma fortuna, pros viciados em crack que estão sem grana e na fissura terrível -; fui. Cabeça erguida, na humildade mas demonstrando segurança. Um que chegou pedindo coisa de cinquenta centavos pra mim me ouviu dizer "não tenho nada, irmão" e passei direto sem dar maiores atenções. Os outros então, vendo que comigo o ladrão não tem ocasião (a menos que chegue armado e na maldade, coisa que só do acaso e de sua instabilidade depende), me deixaram passar direto.
No boteco, uma garrafa de cerveja matando o resto da sede. a observação do movimento do começo da madrugada na boca quente que ainda é o Parque Dom Pedro. A inevitável comparação mental com o centro de Floripa, tão calmo e tranquilo e ainda assim tão temido por alguns nativos e moradores de lá que não conhecem a vida boêmia dos centros urbanos. Pensamentos voando, planando, boiando, respirando. Suspiro um suspiro que geme solidão e saudade de alguma das mulheres que conheci; suspiro um suspiro que geme solidão e saudade de alguma mulher que ainda não conheço. Vendedores ambulantes circulam. Um grupo de meninos de rua maltrapilhos com pés descalços cascudos e imundos passa, alguns respirando com a boca dentro de saquinhos de plásticos contendo cola de sapateiro e os outros pedindo pela vez de cheirar. Suspiro um suspiro de pura tristeza e compaixão impotente.
Uma prostituta cutuca meu ombro. Oferece um programa. Não tem brilho nos olhos, nenhuma vontade de coisa alguma. Parece um robô programado pra oferecer sexo em troca de dinheiro. Recuso, mas ofereço um copo de cerveja. Por curiosidade, pergunto o preço. "Dez reais, meia hora", ela diz. Analiso suas formas: não é feia, apesar de judiada pela vida louca. Penso no nível de desespero que uma mulher deve sentir pra se prostituir por tão pouco dinheiro. Suspiro outro suspiro de quem nada mais pode fazer a não ser suspirar.
Viro e esvazio meu copo. Me despeço da protituta desejando-lhe sorte e saúde. Passo tão rápido pelo trecho que separa o boteco do terminal de ônibus, que nenhum "nóia" se aproxima. Subo no ônibus que já estava pra sair. Me acomodo e sinto o balançar do carro pelo peso do motorista subindo e sentando na sua poltrona. Ele liga o motor, acelera umas cinco vezes, e toca. Em pouco tempo, menos de meia hora, desço no ponto mais próximo do terminal Sapopemba; dali é pouco menos de um quilômetro até o apartamento dos meus pais.
Sede: um boteco aberto e cinco reais no bolso me estimulam a tomar a saideira. A ùltima da noite: o arremate, pra caminhar levezinho até o bloco de prédios em que moram meus pais. Nessas madrugadas de hoje, o Teotônio Vilela está tranquilo. O tempo mais nervoso, quando tinha ladrão espreitando quem quer que passasse na madrugada pela avenida Sapopemba ou Vilanova Artigas, esse tempo passou, ainda que quem quer passear na madrugada deve ficar esperto - como em qualquer outro lugar da cidade.
Na porta do boteco, uma cadelinha viralata pretinha ainda nova olha nos meus olhos e percebe o canal de comunicação que pode conquistar comigo. Manda a energia de pedido telepático, reclamando de fome. Eu bebo minha cerveja. Olho umas meninas bonitas bebendo com seus namorados. Quando eles me olham, estou olhando a televisão, porque estão passando os gols da rodada do campeonato paulista. As meninas são bonitas e percebem que estou olhando pra elas. Percebo que a encrenca se avizinha aos meus passos. Olho pra porta do boteco. A cadelinha está lá. Encho meu último copo dessa noitada. Minha cabeça alivia, meus pensamentos ficam poéticos. Chamo o garçon - porra, garçon num boteco na frente do terminal Sapopemba? é o cara que atende no bar, o Chavez - e pergunto o preço do kibe. "Um e cinquenta", ele responde. É a conta certa: a cerveja, mais o kibe, cinco reais.
Viro o copo e a cerveja desce gelada por minha garganta saciada. A mente, ainda leve, se abre em canal de comunicação com a cadela na porta do boteco. Pego o kibe, saio do boteco e ela vem atrás de mim: sabe que vai ganhar um kibe.
Sento nos degraus da entrada do terminal Sapopemba. Dou o kibe pra cachorrinha pretinha. Penso na Frida e no Blues. A cachorrinha de rua devora o kibe em duas bocadas. Depois, agradecida, abana o rabinho e vem se aconchegar em mim, pedindo carinho. É novinha; uma filhota crescida. Em poucos meses, se ninguém interceder, ela vai gerar mais quatro ou seis cachorrinhos; desses filhotes, de dois a quatro serão fêmeas, que depois de mais seis meses vão embarrigar e gerar mais cachorrinhos de rua. Mais sofrimentos invisíveis pra história da humanidade. Minha consciência apita, aponta, grita e chora. A cachorrinha da rua deitou sua cabeça sobre meus pés, como gosta de fazer a Frida, que nesse momento deve dormir ao lado do Blues na quentinha almofada, na casa do meu irmão, com as tigelas de comida cheia e água abastecida. Nada posso fazer. Ao menos por enquanto. Então suspiro novamente e digo "fica aí, pequeninha", e vou. Bobagem. Bêbado e entorpecido, esqueci que cachorros de rua, ainda mais novinhos assim, ainda tentam desesperadamente arrumar um lar.
Levantei, ajeitei a mochila nas costas - a pequeninha só me olhando, rabinho balançando, implorando carinho, casa, proteção - e comecei a última caminhada daquela noite de meados de março. A cachorrinha me seguiu o tempo todo; tentei ignorá-la, mas ela insistiu corajosamente.
Ao chegar na rua dos blocos de prédios em que moram meus pais, senti que ela ainda me seguia. Nunca poderia, em hipótese alguma, deixar ela entrar no bloco. Sou hóspede, e meus pais são muito sóbrios e respeitados pra que um hóspede deles entre nos blocos de madrugada, com um cachorrinho da rua. Por mais que a intenção seja boa.
Antes de abrir o portão, olhei pra trás: ela estacou, orelhas abaixadas e rabinho que havia balançado esse tempo todo quieto: olhinhos muito tristes. Senti o canal de comunicação perguntando "e eu, amigo? você não vai me levar?", e eu só pude suspirar um suspiro de impotência e despedida.
Quando fechei o portão e avancei pra dentro do bloco de prédios, a pequenina começou um triste choro de cachorrinha filhote, que sem saber de nada da vida e da existência foi deixada na rua e, daí pra frente, nada mais fazia a não ser esperar algum louco piedoso com coragem passar e a adotar.
E eu só podia suspirar, ouvindo seu choro ficando cada vez mais baixo e distante.
terça-feira, 16 de março de 2010
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